Junto com outras organizações, Médicos Sem Fronteiras alerta para aumento de mortes em naufrágios
Médicos Sem Fronteira (MSF) divulgou nesta quinta-feira, 5 de janeiro, um comunicado manifestando extrema preocupação com a entrada em vigor de medidas que restringem a capacidade de atuação de organizações que trabalham em operações de resgate no Mediterrâneo Central.
Pelas novas regras impostas por meio de um decreto-lei emitido pelo governo italiano, as embarcações que atuam na região podem realizar apenas um salvamento por vez, retornando em seguida ao porto designado pelas autoridades para o desembarque das pessoas resgatadas. As penas para quem infringir a regra são multas altas e até a retenção da embarcação.
Até a emissão do decreto, a prática-padrão era realizar diversos salvamentos, atendendo muitas vezes a sucessivos pedidos de socorro, e solicitar depois um porto para desembarque. Isso permite que mais pessoas sejam salvas. Agora, mesmo que uma embarcação tenha capacidade e espaço a bordo para realizar novos salvamentos e aviste pessoas em perigo, não poderá realizar os resgates.
Outro problema é que uma prática comum adotada pelas autoridades italianas tem sido designar portos de desembarque distantes vários dias de viagem dos locais de resgate, para manter as embarcações mais tempo fora de ação e tornar mais difícil o trabalho humanitário das organizações.
MSF e as outras 19 organizações que assinam o comunicado afirmam que o decreto viola o direito marítimo internacional e pedem que ele seja rejeitado pelo Parlamento italiano.
Leia a seguir a íntegra do comunicado abaixo:
Nós, organizações civis que realizam atividades de busca e resgate no Mediterrâneo Central, expressamos nossa extrema preocupação diante da tentativa mais recente de um governo europeu de obstruir a assistência a pessoas em perigo no mar.
No dia 2 de janeiro, o governo italiano emitiu um novo decreto-lei que regulamenta as atividades de busca e salvamento no Mar Mediterrâneo central. A medida atinge em cheio as organizações não governamentais que trabalham com o resgate de migrantes no mar, e que atuam de acordo com uma série de leis internacionais. Em conjunto, as entidades civis expressaram uma profunda preocupação em relação à tentativa de um governo europeu de obstruir a assistência a pessoas em perigo no mar.
De acordo com as organizações, o novo decreto-lei do governo italiano reduzirá a capacidade de resgate no mar, tornando o Mediterrâneo Central, atualmente uma das rotas migratórias mais mortais do mundo, ainda mais perigosa. O decreto impacta ostensivamente as ONGs de busca e salvamento, mas o preço real será pago por pessoas que fogem através do Mediterrâneo Central e se encontram em situação de perigo.
Desde 2014, os navios civis de resgate estão preenchendo a lacuna que os Estados europeus deliberadamente deixaram, após interromperem suas operações de busca e salvamento lideradas pelo bloco. As ONGs têm desempenhado um papel essencial para preencher essa lacuna e evitar que mais vidas sejam perdidas no mar, ao mesmo tempo em que defendem consistentemente a manutenção das leis aplicáveis.
Apesar disso, os Estados-membros da União Europeia – principalmente a Itália – tentaram durante anos obstruir as atividades civis de busca e salvamento por meio de difamação, assédio administrativo e criminalização de ONGs e ativistas.
Já existe uma jurisprudência abrangente para as atividades de resgate, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS – sigla em inglês) e a Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimo (Convenção SAR). No entanto, o governo italiano introduziu mais um conjunto de regras para embarcações civis de busca e salvamento, que impedem as operações de resgate e colocam ainda mais em risco as pessoas que estão em perigo no mar.
Entre outras regras, o governo italiano exige que os navios civis de resgate se dirijam imediatamente para a Itália após cada resgate. Isso atrasa outras operações de salvamento, já que os navios costumam realizar vários resgates ao longo de vários dias. Instruir as ONGs de busca e salvamento a prosseguir imediatamente para um porto, enquanto outras pessoas estão em perigo no mar, contradiz a obrigação do capitão de prestar assistência imediata às pessoas em perigo, conforme determinado na UNCLOS.
Este elemento do decreto é agravado pela recente política do governo italiano de atribuir “portos distantes” com mais frequência, que podem estar até quatro dias de navegação a partir da localização atual de um navio.
As duas medidas foram criadas para manter os navios de busca e salvamento fora da área de resgate por períodos prolongados e reduzir sua capacidade de fornecer assistência às pessoas em perigo. As ONGs já estão sobrecarregadas devido à ausência das operações de salvamento lideradas pelo bloco, e a diminuição da presença de navios de resgate resultará inevitavelmente em mais pessoas tragicamente se afogando no mar.
Outra questão levantada pelo decreto é a obrigação de coletar dados dos sobreviventes a bordo das embarcações de resgate, a intenção de solicitar proteção internacional, e compartilhar essas informações com as autoridades. É dever dos Estados iniciar esse processo e uma embarcação não governamental não é um lugar apropriado para isso. Os pedidos de asilo devem ser tratados apenas em terra firme, após o desembarque para um local seguro e após as necessidades imediatas serem atendidas, conforme esclarecido recentemente pela Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).1
De modo geral, o decreto-lei italiano contradiz o direito marítimo internacional, os direitos humanos e o direito europeu, e deveria, portanto, desencadear uma forte reação por parte da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, dos Estados-membros e das instituições europeias.
Nós, organizações civis envolvidas em operações de busca e salvamento no Mediterrâneo Central, apelamos ao governo italiano que revogue imediatamente o novo decreto-lei. Apelamos também a todos os deputados do Parlamento italiano para que se oponham ao decreto, impedindo assim que ele seja convertido em lei.
O que precisamos não é de outra medida com motivações políticas que obstrua as atividades vitais de busca e salvamento, mas que os Estados-membros da União Europeia cumpram as leis internacionais e marítimas existentes, bem como garantam o espaço de trabalho operacional para as organizações civis de resgate.
Organizações SAR signatárias: EMERGENCY, Luventa Crew, Mare Liberum, Médecins Sans Frontières/Doctors Without Borders (MSF), MEDITERRANEA Saving Humans, MISSION LIFELINE, Open Arms, r42-sailtraining, ResQ - People Saving People, RESQSHIP, Salvamento Marítimo Humanitario, SARAH-SEENOTRETTUNG, Sea Punks, Sea-Eye, Sea-Watch, SOS Humanity, United4Rescue, Watch the Med - Alarm Phone.
Organizações co-signatárias:
Borderline-Europe, Menschenrechte ohne Grenzen e.V. Human Rights at Sea.
1 Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Considerações legais sobre os papéis e responsabilidades dos Estados em relação ao resgate no mar, não-repulsão e acesso ao asilo, 1 December 2022, disponível em: https://www.refworld.org/docid/6389bfc84.html.